domingo, 3 de abril de 2011

Neruda tímido

"A timidez é uma condição estranha da alma, uma categoria e uma dimensão que se abre para a solidão. Também é um sofrimento inseparável, como se a gente tivesse duas epidermes, e a segunda pele interior se irritasse e se contraísse diante da vida."

(Pablo Neruda no livro de memórias "Confesso que vivi". Pág. 44)

Eu deveria estar lendo vários outros textos pra faculdade, mas não resisti quando ganhei esse lindo presente. E que surpresa ao descobrir que o "poeta do povo" Pablo Neruda - ou Neftalí Ricardo Reyes Basoalto - foi um adolescente extremamente tímido, que fugia das meninas, trocava de calçada para não cumprimentar conhecidos, e entrava mudo e saía calado, sem dizer bom-dia ou tchau. má educação? esquisitice? só quem sofre ou já sofreu de timidez entende.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Duras

"Ele diz:
- O sol está ao nível do mar.
Uma poça de sol surgiu na parede do quarto, vem de debaixo da porta de entrada, é grande como uma mão, treme sobre a pedra da parede. A poça vive apenas alguns segundos. Seu desaparecimento é brutal, é arrancada da parede à sua própria velocidade, a da luz. Ele diz:
- O sol se foi, chegou e acabou como nas prisões.

Ela volta a colocar a seda preta no rosto. Ele não sabe mais nada, nem do rosto nem do olhar. Ela chora em leves soluços. Diz: Não é nada, é a emoção. Depois manda que a pronuncie com os próprios lábios sem nenhuma interrogação, sem objetivo: Emoção. "

(trecho de "olhos azuis cabelos pretos")

começo 2011 apaixonada pelo texto de Marguerite Duras, primeiro com "O Amante", e agora com esse belo romance.

domingo, 18 de julho de 2010

vinho e poesia


vinho e poesia juntos
tudo num gole só
quem precisa de tanta sensibilidade num domingo à noite?

largue desses livros e vá dormir, menina
que amanhã é dia
e a semana te atropela

não tem Neruda que dê jeito
não tem Vinicius que te sustente
beba teu leite e deite

nada de Maiakóvski ou Florbela
deixe a Emily na cabeceira
beba teu leite e deite

que a noite passa
que o vinho passa
e o choro seca

sim, menina, o choro seca

sábado, 17 de julho de 2010

Sob o céu de Saigon

"(...) E então como se um anjo de asas de ouro filigranado rompesse de repente as nuvens chumbo e com seu saxofone de jade cravejado de ametistas anunciasse aos homens daquela rua e daquele sábado à tarde naquela cidade a irreversibilidade e a fatalidade da redondeza das esquinas do mundo - ele olhou para ela e ela olhou para ele.

Ele sorriu para ela, sem ter o que dizer. Ela também sorriu para ele. Mas disse, a moça disse:
- Parece Saigon, não?
- O quê? - ele perguntou sem entender.
Ela apontou para cima:
- O céu. O céu parece Saigon.
Surpreso, e meio bobo, ele perguntou:
- E você já esteve em Saigon?
- Nunca - ela sorriu outra vez. - Mas não é preciso. Deve ser bem assim, você não acha?
- O quê? - ele, que era meio lento, tornou a perguntar.
- O céu - ela suspirou. - Parece o céu de Saigon.
Ele sorriu também outra vez. E concordou:
- Sim, é verdade. Parece o céu de Saigon.

Nesse momento - dizem que cabe aos homens esse gesto, e eles eram mesmo meio antigos - talvez ele tenha pensado em oferecer um cigarro a ela, em perguntar se já tinha visto aquele filme, se queria tomar um café no Ritz, até mesmo como ela se chamava ou alguma outra dessas coisas meio bestas, meio inocentes ou terrivelmente urgentes que se costuma dizer quando um desses rapazes e uma dessas moças ou qualquer outro tipo de pessoa, e são tantos quantas pessoas existem no mundo, encontram-se de repente e por alguma razão, sexual ou não, pouco importa se por alguns minutos ou para sempre, tanto faz, por alguma razão essas pessoas não querem se separar. Mas como ele era mesmo sempre um tanto lento, não perguntou coisa alguma, não fez convite nenhum. Nem ela. Que lenta não era, mas apenas distraída. (...)"

Trecho do conto "Sob o céu de Saigon", do Caio F.. Achei no livro "Ovelhas Negras", que eu "roubei" de um amigo dia desses. Difícil vai ser devolver esse livro. O conto completo, e outros, você encontra aqui.

domingo, 4 de julho de 2010

Exatamente agora

Tem alguém morrendo exatamente agora, acordou pensando. Levantou bruscamente, coisa que só faz quando está atrasado. Mas era domingo. Abriu a geladeira, lembrou que só tinha água e gelo. Serviu um copo. Podia ter pensado: tem alguém nascendo agora. Mas não pensou. Nesses 42 anos de existência, nunca tivera medo da morte, constatou naquele minuto com o copo metade cheio metade vazio na mão. Mas acordar com aquele pensamento numa manhã de domingo lhe causou um frio na espinha. A casa parecia mais escura que de costume naquela manhã, os móveis mais imóveis, e a cama de casal ameaçadoramente grande.

Não teve alternativa: vestiu um moletom e saiu. Era outono, as árvores já mostravam seu desapego às folhas. Outono nada mais é que tempo de morte, pensou. Sentou no banco da praça e viu a vizinhança acordar lentamente. Os primeiros fregueses saíam da padaria com pães quentinhos. Jovens bem dispostos com mochilões se preparavam para pegar uma trilha, enquanto senhores com mais de 60 se encontravam na praça para jogar dominó. Pensou se chegaria aos 60. Achou um luxo. Mais luxo ainda seria chegar aos 60 com alguém com quem jogar qualquer jogo que fosse.

O carro acabou de se estraçalhar no poste. O coração parou de bater. A navalha foi a sua salvação. O feto parou de nadar. A terra carregou a cama e o casal. A onda acabou de tragar o bote. Tem alguém prestes a morrer. Alguém está terminando agora. E por que não ele? Por que ficar no meio do caminho? Assistir vida e morte se cruzarem e continuar nessa meia-vida, meia-morte, esqueleto sozinho ambulante, olhando dois esqueletos se beijando na praça, quatro esqueletos jogando dominó, cinco esqueletos indo à praia e ele ali, esqueleto sozinho, pronto a desvanecer a qualquer minuto, exatamente agora.

Mas a bendita nunca chegou pra ele. E ele não teria o despautério de antecipar o final, não lhe cabia este papel. O frio na espinha, naquela manhã, podia ser um sinal. Resolveu procurar outros. Foi caminhando e, quando se deu conta, estava na entrada do Bosque da Paz, o agradável bosque que circundava o bairro. Para onde olhava, via morte. As folhas murchas no chão eram o primeiro sinal para qualquer esqueletinho, mas ele foi além. Viu um ninho de bem-te-vis destruído. Os ovos estraçalhados. Um rato esmagado. Um pássaro azul devorando uma minhoca. Um homem com uma faca. Parou. Uma faca sangrenta. Alguém estava morrendo naquele exato minuto. Ou já teria morrido no minuto anterior? Não ouviu berros nem gemidos. O homem guardava a ferramenta com calma. No chão, um corpo pequeno vestido de branco. Branco manchado de sangue. Folhas mortas vermelhas de sangue.

Ele podia (ou devia?) gritar. Denunciar o assassino. Socorrer a vítima, talvez com vida. Mas nada fez a não ser ficar sentado, posição em que passei a maior parte da vida naquela repartição quase insuportável, pensou. Não se moveu. Não que tivesse medo da morte, só não queria se envolver. Não lhe cabia esse papel. Virou pedra, imóvel, sem nada sentir. Até que o outro se foi, calmamente, sem medo de ser apanhado.

Ele, então, de pedra virou homem, esqueleto ambulante outra vez. Seguiu o caminho de volta, sem olhar pra trás. Não teve curiosidade de ver como o pequeno corpo ficou, todo cortado. Ou seria apenas um corte, um profundo e certeiro corte?

Voltou para a cama, era domingo de outono e fazia frio. E ela, tão grande, até que o acolhia bem. Ligou a TV. Começou a Fórmula 1, e ele adormeceu ao som de Galvão Bueno. MENINA ENCONTRADA MORTA A FACADAS NO BOSQUE DA PAZ, ouviu ao longe. Na TV. O mundo é tão violento, constatou deitado na cama grande. A cada minuto acontece uma desgraça. Tem alguém morrendo exatamente agora, desligou a TV. E por que não eu?, adormeceu novamente.

*Escrito à luz de velas durante a semana caótica das chuvas no Rio, e trabalhado na oficina de contos com o escritor João Paulo Vaz. Obrigada João.

segunda-feira, 3 de maio de 2010