domingo, 4 de julho de 2010

Exatamente agora

Tem alguém morrendo exatamente agora, acordou pensando. Levantou bruscamente, coisa que só faz quando está atrasado. Mas era domingo. Abriu a geladeira, lembrou que só tinha água e gelo. Serviu um copo. Podia ter pensado: tem alguém nascendo agora. Mas não pensou. Nesses 42 anos de existência, nunca tivera medo da morte, constatou naquele minuto com o copo metade cheio metade vazio na mão. Mas acordar com aquele pensamento numa manhã de domingo lhe causou um frio na espinha. A casa parecia mais escura que de costume naquela manhã, os móveis mais imóveis, e a cama de casal ameaçadoramente grande.

Não teve alternativa: vestiu um moletom e saiu. Era outono, as árvores já mostravam seu desapego às folhas. Outono nada mais é que tempo de morte, pensou. Sentou no banco da praça e viu a vizinhança acordar lentamente. Os primeiros fregueses saíam da padaria com pães quentinhos. Jovens bem dispostos com mochilões se preparavam para pegar uma trilha, enquanto senhores com mais de 60 se encontravam na praça para jogar dominó. Pensou se chegaria aos 60. Achou um luxo. Mais luxo ainda seria chegar aos 60 com alguém com quem jogar qualquer jogo que fosse.

O carro acabou de se estraçalhar no poste. O coração parou de bater. A navalha foi a sua salvação. O feto parou de nadar. A terra carregou a cama e o casal. A onda acabou de tragar o bote. Tem alguém prestes a morrer. Alguém está terminando agora. E por que não ele? Por que ficar no meio do caminho? Assistir vida e morte se cruzarem e continuar nessa meia-vida, meia-morte, esqueleto sozinho ambulante, olhando dois esqueletos se beijando na praça, quatro esqueletos jogando dominó, cinco esqueletos indo à praia e ele ali, esqueleto sozinho, pronto a desvanecer a qualquer minuto, exatamente agora.

Mas a bendita nunca chegou pra ele. E ele não teria o despautério de antecipar o final, não lhe cabia este papel. O frio na espinha, naquela manhã, podia ser um sinal. Resolveu procurar outros. Foi caminhando e, quando se deu conta, estava na entrada do Bosque da Paz, o agradável bosque que circundava o bairro. Para onde olhava, via morte. As folhas murchas no chão eram o primeiro sinal para qualquer esqueletinho, mas ele foi além. Viu um ninho de bem-te-vis destruído. Os ovos estraçalhados. Um rato esmagado. Um pássaro azul devorando uma minhoca. Um homem com uma faca. Parou. Uma faca sangrenta. Alguém estava morrendo naquele exato minuto. Ou já teria morrido no minuto anterior? Não ouviu berros nem gemidos. O homem guardava a ferramenta com calma. No chão, um corpo pequeno vestido de branco. Branco manchado de sangue. Folhas mortas vermelhas de sangue.

Ele podia (ou devia?) gritar. Denunciar o assassino. Socorrer a vítima, talvez com vida. Mas nada fez a não ser ficar sentado, posição em que passei a maior parte da vida naquela repartição quase insuportável, pensou. Não se moveu. Não que tivesse medo da morte, só não queria se envolver. Não lhe cabia esse papel. Virou pedra, imóvel, sem nada sentir. Até que o outro se foi, calmamente, sem medo de ser apanhado.

Ele, então, de pedra virou homem, esqueleto ambulante outra vez. Seguiu o caminho de volta, sem olhar pra trás. Não teve curiosidade de ver como o pequeno corpo ficou, todo cortado. Ou seria apenas um corte, um profundo e certeiro corte?

Voltou para a cama, era domingo de outono e fazia frio. E ela, tão grande, até que o acolhia bem. Ligou a TV. Começou a Fórmula 1, e ele adormeceu ao som de Galvão Bueno. MENINA ENCONTRADA MORTA A FACADAS NO BOSQUE DA PAZ, ouviu ao longe. Na TV. O mundo é tão violento, constatou deitado na cama grande. A cada minuto acontece uma desgraça. Tem alguém morrendo exatamente agora, desligou a TV. E por que não eu?, adormeceu novamente.

*Escrito à luz de velas durante a semana caótica das chuvas no Rio, e trabalhado na oficina de contos com o escritor João Paulo Vaz. Obrigada João.

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